Carta de uma menina à mãe na altura do dia do pai.

A carta, ficcionada, tenta percorrer as duas perspectivas: onde há abandono de facto ou onde o mesmo é provocado.
A maior dificuldade de alterar o comportamento é na maior parte das vezes a enorme inconsciência de quem o gera.

‘Querida Mãe:
Não, Mãe, tu não és Mãe e Pai, nunca serás.
Podes ser uma grande Mulher, podes ser uma grande Pessoa, podes ser uma grande Mãe, mas nunca serás Pai.

Não, Mãe, tu não és meu Pai porque me sustentas sozinha, porque o Pai prefere gastar dinheiro no café ou com amigos, ou porque pura e simplesmente não quer, ou porque está desempregado e não consegue fazê-lo.
Não, Mãe, isso faz dele um ser irresponsável, uma pessoa má, ou na última hipótese, e aos teus olhos, um fracassado. Mas, não, Mãe, isso não faz de ti meu Pai. O meu Pai pode até ser uma daquelas três coisas, mas não é nem nunca serás tu.

Já é duro suficiente dizeres-me ter um Pai que não quer saber de mim. Então, porque me fazes sofrer ainda fazendo-me sentir que te sacrificas o dobro do que terias de te sacrificar se não me tivesses tido?
Achas que não é suficiente para mim a dor de ir percebendo a indiferença da pessoa que a par de ti mais amo?

Mente-me, então, Mãe, se precisares.
Diz-me que ele é o maior, que ele é um super herói a quem a vida não trata bem, que não me pode dar nada, não porque não queira, mas porque não pode, mesmo que isso não seja verdade.
Se não for, mente até eu crescer e deixar de pensar que a Lua, tal como tu e o Pai, existem só para mim. Dá-me o teu amor. E se o dele não existir, recria-o como se existisse.
Mente, por favor. Não me deixes sofrer, nem saber tão cedo que inundas Tribunais com requerimentos de incumprimento das suas responsabilidades… Protege-me, mas não tentes dizer-me que és meu Pai.

Não, Mãe, tu não és Mãe e Pai, nunca serás.
O meu Pai traiu-te? Foi desonesto contigo? Foi os palavrões que me pedes para não dizer? Tem outra família e esqueceu-se que existo?
Não me contes isso, pelo menos, para já. Por favor, esconde-me isso, como quem esconde um canal para maiores de dezoito anos.
A sério, Mãe. Isso não vai fazer de ti um Pai.

É difícil esconder a tua dor para me protegeres? Deve ser… Do mais difícil que pode existir… Deve criar um sentimento de enorme injustiça, afinal, Mãe, o meu Pai, foi tua escolha. Mas na vida, todas as escolhas são meias oportunidades. Se achas que a tua falhou, aguenta Mãe, mas não me faças sentir um dano irreparável.
Ele não foi honesto com uma das pessoas que mais amo?
Se souber disso vou odiá-lo, mas isso não vai acalmar a tua dor e o que vai ficar em mim, porque, LEMBRA-TE, a Lua existe só para mim, é que se ele realmente me amasse não te faria sofrer. Se ele realmente me amasse não faria nada que pudesse fazer com que vocês se separassem… de mim…
A vida é assim… É para ti e será para mim.

Não, Mãe, tu não és Mãe e Pai, nunca serás.
Estás a sofrer porque ele não te tratou bem? Estás em dor porque te sentes presa ao sonho que se tornou em pesadelo? É por isso que te chateias porque ele não me pôs o casaco quando estava vento e cheguei a casa constipada? Se calhar ele nunca pôs o casaco, Mãe, nem mesmo quando estava contigo… Porque sofres assim, só porque estou constipada, por ter sido feliz? Trata a minha constipação, porque ela valeu-me o bom tempo que passei com ele. Sim, com esse meu Pai, que, segundo tu, pode não valer nada, mas que eu amo por ser quem é, e com quem quero estar, mesmo que julgues que ele não merece. É um direito meu, Mãe. Se me decepcionar, mantém o teu colo quente.

Se ele não está, se ele não me liga, não tentes conseguir isso com um papel, por favor, informando-me de todos os passos que tentas dar para conseguires reverter isso.
Pai nenhum ficará com um filho horas a fio por Decreto.
A lei não consegue unir o que as pessoas não querem unir.
Por outro lado, nunca conseguirá separar o que as mesmas pretendem juntas. Por isso, não me tentes afastar dele, só porque sentes a tua escolha uma escolha infeliz.

Mas se ele não quiser estar comigo, finge mais uma vez… só até eu ter idade para perceber que isso não me torna melhor ou pior pessoa. Só até eu ter idade para saber que o problema não está em mim.

Se conseguires fazer tudo isso, Mãe. Não terás sido Mãe e Pai.
Mas terás, certamente, sido uma grande Pessoa, uma grande Mãe.
Agora vou. O dia é dele, como são todos. Assim como todos os dias também são teus.’

Texto escrito por Ana Tomé Marques (Advogada, Mãe).

 

 

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