O que fazer com o que fazem de nós?

Escutava o avô comentando sobre o seu, até então, querido neto:
– Nunca esperava isso dele. Foi uma agressão! Estou com o meu olho machucado…

E continuou a contar a história do momento em que foi agredido fisicamente pelo seu neto de quatorze anos. As palavras mostravam a sua mágoa e o seu profundo sentimento de tristeza para com a atitude do neto que tanto o orgulhara até agora. Qualquer tipo de agressão física é absurda e injustificável, ainda mais se considerarmos um menino agredir um senhor acima de setenta anos. Não há o que justifique essa atitude, porém pode ser simplesmente o resultado daquilo que fizeram com ele, o neto.

Conheço a família desde que o neto em questão nasceu e sempre ouvi as histórias que os adultos contavam sobre ele, muitas vezes, na presença dele. Foram inúmeras as vezes em que eu a ouvia histórias sobre como o neto era duro na queda desde muito pequeno. Não levava desaforo pra casa de jeito nenhum! era uma entre tantas outras expressões usadas para caracterizar o gênio forte do menino. Em seguida vinham as histórias sobre como ele enfrentou uma professora no Jardim de Infância quando então tinha em torno de quatro aninhos; ou daquele dia em que ele partiu pra cima do instrutor na escolinha de futebol; ou ainda as inúmeras brigas e confusões com os coleguinhas.
Com ele ninguém se mete. Já sabem que vão levar… falava todo orgulhoso o avô na presença dos pais e do menino, que ouvia as suas histórias serem contadas e recontadas como uma travessura que o engrandecia. Era visível o prazer que gerava no menino ser objeto da conversa da roda dos adultos, pois muitas vezes postava-se ao lado para ouvir as próprias histórias. Os fatos em si, provavelmente, teriam ficado esquecidos num canto da memória profunda que guarda as experiências da infância e não teriam maior significado para aquele menininho que enfrentara a professora ou que avançara no instrutor da escola de futebol. Porém, ao ser contada e relembrada pelos adultos, dando-lhe contornos de um ato fora de série que o caracterizava como um menino agressivo e forte, passou a ser relevante para ele. As brigas e malcriações foram premiadas com a popularidade de ele ouvir que elas fossem contada em prosa e verso. As histórias vinham acompanhadas com adjetivos como rebelde, forte ou travesso e expressões como, ninguém segura esse menino, entre outras que ampliavam em muito os fatos ocorridos. Quantas crianças não tiveram desentendimentos com professores ou instrutores? Para os adultos que recontavam a história, provavelmente, era apenas um motivo para poder falar da pessoa que eles tanto amavam; para a criança, entretanto, que ouvia a sua história era a formação da sua identidade. Estavam a atribuir-lhe um papel que ele passou a representar em suas demais ações e atitudes. Terminou agredindo o avô.

É assim que nós adultos moldamos as crianças e os outros. Pegamos um fato, por vezes isolado, o ampliamos e o repetimos a tal ponto que no final nós também acreditamos que o outro é daquele jeito que nós o descrevemos. Aquilo que na infância era uma travessura, na adolescência passou a ser rebeldia e na idade adulta pode produzir resultados ainda mais ampliados. Com certeza quase cada um de nós traz algumas lembranças de rótulos que nos eram postos quando crianças. É muito comum ouvir os adultos dizerem, Ah, o meu filho mais velho é muito educado, mas o mais novo é terrível. E lá estão as crianças a ouvirem e a serem moldadas pelas nossas palavras. As palavras têm poder. Essa cena se repete e continua tendo poder também na idade adulta. É comum ouvirmos um chefe dizer, Com Fulano posso contar sempre, mas Cicrano sempre chega atrasado…, ainda que o atraso tenha sido baseado em uma única vez. E, de repente, aquilo que era um fato isolado termina por se confirmar. As pessoas terminam por desempenhar, ainda que inconscientemente, o papel social que lhes foi atribuído. Vestem a carapuça.

Quer dizer que estamos presos àquilo que os outros querem que nós sejamos? Não, não é isso. No meu ponto de vista existe aí uma grande oportunidade que passa pela necessidade de tomada de consciência do papel que desempenhamos, daquele que nos foi”atribuído” e do papel que queremos desempenhar. O quanto antes nós tomarmos consciência daquilo que fizeram conosco vai nos permitir que sejamos aquilo que realmente queremos ser.

O que é que nós estamos fazendo com aquilo que fizeram conosco? O que é que nós estamos fazendo com os outros?

Artigo publicado com autorização do autor. Poderá encontrar o original aqui.

Moacir Rauber
Moacir Rauber
É  Orador na Olhe mais uma vez, Coach Executivo e Escritor.

 

Comentários